terça-feira, 30 de setembro de 2008

Escolhas

A vida é uma sucessão de escolhas. O curso da sua vida vai de acordo com aquelas que você faz e também, em grande parte, com as que as pessoas ao seu redor fazem. Mas como cada segundo é diferente do outro, a gente nunca, nunca, nunca pode saber o que teria acontecido caso você tivesse feito uma escolha ao invés de outra, e mesmo que no futuro você converta o seu caminho, já não é a mesma coisa caso você houvesse feito esta escolha em primeiro lugar. Isso é meio assustador porque quando você tem duas ou mais opções de caminho na sua frente, escolher uma delas significa se tornar totalmente ignorante a respeito do que seria a sua vida caso você escolhesse outra coisa. É uma responsabilidade muito grande, mas que nós enfrentamos dia após dia.

Eu falo isso porque acabei de tomar uma decisão importante na minha vida. Decidi que não quero ser um empregado e pedi demissão do meu trabalho. Desde ontem não trabalho mais na empresa onde estava e voltei a ser freelancer. O pior é que eu devo ser o freelancer mais despreparado da área. Não tenho muitos contatos, não estou com projetos engatilhados nem nada, mas tudo isso tem um propósito. Mais do que viver de freelas eu quero construir algo meu. Quero ser dono do meu sustento. Devido ao quadro atual do Brasil, às vezes eu me pergunto se não sou o cara mais estúpido, mas daí eu penso: nááá... E fica tudo bem :)

Mas por que eu estou escrevendo isto aqui? Poderia escrever isto no meu blog pessoal ou qualquer coisa assim, num é? Bom, escrevo aqui porque gostaria que vocês orassem por mim. Para que Deus possa me ajudar neste novo caminho e me guie, até mesmo se eu tomei a direção errada, que eu tenha forças para voltar e mudar. Conto com vocês nesta minha nova caminhada e que o impacto desta escolha possa ser positivo na minha vida e na vida daqueles que me cercam. O bom é que agora eu vou ter tempo de blogar com mais calma, e este é só um primeiro post desta "Nova Era" (tcharã - não que isso seja realmente super lega né?).

Muito obrigado a todos e nos vemos por aí! Abraços efusivos!

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Deuses que nunca conheceram

Fiquei surpreso de perceber, ao ler o livro de Jeremias imediatamente após ler o livro de Isaías, o quanto mais perverso e cruel se tornou o povo de Judá durante a vida de Jeremias. Os pecados da elite política, econômica e sacerdotal de Judá durante o ministério de Isaías (cujas acusações poderiam ser resumidas como "Vocês ignoram os pobres! Abandonaram ao Senhor! São gananciosos e hipócritas! Não me consultaram quanto a decisões de política externa! E bebem demais!") são quase triviais quando comparados com os sacrifícios humanos e a pura audácia blasfema da geração posterior, que ergueu altares aos deuses cananeus no templo do Senhor.

Nas palavras de Jeremias, relatando a mensagem de Deus, "Para minha ira e para meu furor me tem sido esta cidade, desde o dia em que a edificaram até ao dia de hoje, para que a tirasse da minha presença, por todas as maldades que os filhos de Israel e os filhos de Judá fizeram, para me provocarem á ira; eles e os seus reis, os seus príncipes, os seus sacerdotes e os seus profetas, como também os homens de Judá e os moradores de Jerusalém. E viraram para mim as costas e não o rosto; ainda que eu os ensinava, madrugando e ensinando-os, eles não deram ouvidos para receberem ensino. Antes, puseram seus abominações na casa que se chama pelo meu nome, para a profanarem. E edificaram os altos de Baal, que estão no vale do filho de Hinom, para fazerem passar seus filhos e suas filhas pelo fogo a Moloque, o que nunca lhes ordenei, nem subiu ao meu coração que fizessem tal abominação, para fazerem pecar a Judá." (Jer. 32:31-35)

As palavras são chocantes se cremos que vem de Deus. Vemos o Deus onisciente dizendo que nunca imaginou, que nunca sequer lhe ocorreu, que "nem subiu ao meu coração" que o povo chegaria a sacrificar suas próprias crianças. Deus rejeitando seu próprio templo, chamando-o friamente de "a casa que se chama pelo meu nome". Enquanto a maioria das acusações em Isaías eram feitas contra os que estavam no poder, em Jeremias todo o povo está sob condenação, por pecados literalmente inimagináveis para gerações anteriores. "Porquanto me deixaram, e profanaram este lugar, e nele queimaram incenso a outros deuses, que nunca conheceram, nem eles, nem seus pais, nem os reis de Judá; e encheram este lugar de sangue de inocentes."

O que torna esta situação especialmente espantosa é seu contexto; a geração de Jeremias era a primeira em duas gerações a ter um rei que banisse a religião cananéia. Josias (cujo avô Manassés, roga a tradição, serrou o profeta Isaías ao meio) liderou uma reforma incrível do culto a Javé, destruindo os altares de Baal e restaurando o Templo. Quando Deus diz que o povo oferecia incenso e crianças vivas a deuses "que nunca conheceram", Ele não está exagerando; está notando que aquela geração tinha sido criada num contexto religioso incontaminado pelas barbaridades do culto cananeu. O que me deixa assustado.

Isso me deixa assustado porque não consigo deixar de ver uma relação causal entre o avivamento do culto a Deus sob Josias e a profundeza redobrada de paganismo e holocausto humano ao qual seus descendentes mergulharam. Quem sabe esse gusto com que Judá buscou deuses como Moloque se devia ás conversões forçadas de gerações anteriores, que talvez não foram inteiramente sinceras. Quem sabe C.S. Lewis estava certo quando disse que os grandes pecadores são feitos do mesmo material que os grandes santos, e que portanto a geração criada na maior santidade em sua juventude necessariamente se tornaria legendariamente depravada caso se apostatasse. O próprio Jesus descreve um princípio parecido em Lucas 11:24-26, dizendo que quando um espírito imundo que fora anteriormente expulso volta para "visitar" seu velho hóspede e encontra-o preparado para ele ("varrida e adornada", como se esperando sua chegada) ele volta e traz consigo mais sete espíritos piores do que ele; "e o último estado daquele homem é pior do que o primeiro."

Nós evangélicos somos orgulhosos de nosso crescimento numérico. Gabamo-nos do avivamento que infla nossas igrejas, e declaramos altamente que "O Brasil é de Jesus!" Muito bem, realmente é boa coisa que o evangelho tenha sido pregado em tantos lugares, para pessoas que nunca o consideraram sériamente antes. Mas tenho medo, medo real, que se não solidificarmos nossas igrejas, se não investirmos em educação cristã para leigos nas igrejas, se não consolidarmos nossas conquistas neste país- enfim, se não edificarmos os que já estão na igreja ao invés de apenas buscar novos convertidos- sinto que nossas vitórias terão sido em vão. Esta geração evangélica é maciçamente uma de convertidos; se não tivermos cuidado, a próxima será uma apenas de nascidos-na-igreja; e a próxima depois será uma de apóstatas e céticos. Ou nos preocupamos hoje em consolidar os que já estão na igreja-sem negligenciar o evangelismo, é claro- ou começamos quando for tarde demais; e já teremos perdido uma geração para o mundo. Se você acha a cultura brasileira ímpia e carnal hoje, imagine uma cultura brasileira pós-cristã.

A geração de Isaías, neta e bisneta de pagãos e falsos adoradores, foi avarenta e indulgente consigo mesma. A geração de Jeremias, criada no Templo ouvindo a Lei, foi espetacularmente cruel e perversa. Os demônios do povo voltaram sete vezes mais fortes após sua apostasia. Que isto nos sirva de aviso e lição.

domingo, 21 de setembro de 2008

Take that, Bento XVI.

Existe um acordo tácito entre protestantes e católicos que crêem que o outro lado não está indo (necessariamente) para o inferno: que o outro lado é salvo apesar de suas heresias, baseado naquilo que tem em comum com nosso lado (você sabe, o nosso lado, o do cristianismo verdadeiro). Assim, o Igor diz que sou salvo porque meu batismo foi, de certo modo, válido, e que sou membro da Madre Igreja mesmo sem reconhecê-la como Madre e just barely como Igreja. Assim eu digo que Igor foi salvo pela graça de Deus operando em seu espírito mediante a fé, e isto é provado por sua submissão ao Senhor. Cada um considera o outro um enganado, mas não um apóstata; um herége, certo, mas um irmão herége. Neste cessar-fogo surgem momentos de apreciação verdadeira pelas qualidades do outro lado, e admiração até pelas virtudes gastas em vão. Quando o rei Alfred lança seu tesouro aos pés da aparição de Maria e implora a ela por respostas ("Mother of God" the wanderer said, "I am but a common king, and not will I ask what saints may ask, to see a secret thing."), a cena é comovente não apenas por causa das circunstâncias desesperadas e urgentes de Alfred, mas por sua devoção real á Mãe de Jesus.

E é por isso que fiquei tão espantado com minha reação a um DVD de um pastor assembleiano que se converteu ao catolicismo. O homem (não direi seu nome aqui) listou como principal motivo de sua adesão ao catolicismo o culto da Virgem, e isto (eu prometo) não me fez automaticamente hostil. Mas ao relatar com sua vozinha ovina sua conversão- sua visão num sonho de uma mulher que, acredita ele, é Santa Isabel; sua defesa de imagens; sua adulação contínua de Maria e do papa; sua invocação de anjos (que quando ocorre nas igrejas pentecostais é misticismo e bobagem, mas nas igrejas católicas é diferente, é chamar São Miguel e São Gabriel); sua indignação e surpresa de que a Assembléia de Deus não aceitaria em sua convenção um homem que cultuasse santos; tudo isto me irritou bastante, e confesso que fiquei surpreso com isso. Não justifico minha irritação, mas aqui não estava um católico que, apesar de seu catolicismo conhecia a fé verdadeira; aqui estava um homem que conhecia a fé verdadeira, e então mergulhou de cabeça em tudo aquilo que a reforma deixou para trás, abandonando sua fé nas Escrituras para confiar na voz de homens. Eu senti uma indignação não apenas doutrinária, mas cultural, emocional, pessoal. Se você é ateu ou agnóstico, imagine sua reação perante um físico que abandonou sua confiança na ciência e se tornou mórmon após ver uma imagem de Jesus numa torrada.

E entendi, pela primeira vez, a raiva que alguns católicos tem contra as igrejas protestantes. Desde que nasci as Igrejas evangélicas só fazem crescer, com novos-convertidos oriundos, na maioria dos casos, da igreja Católica; e descobri que ver a defecção de um do seu lado é um espetáculo amargo. Mas ainda darei um troco nos católicos; vou converter o Igor ás Assembléias de Deus. Take that, Bento XVI.

sábado, 20 de setembro de 2008

lado “b”

Não é sem um pouco de constrangimento que venho avisá-los de mais uma mudança, desta vez definitiva. Como os amigos reclamassem unanimemente de seu fim, resolvi resgatá-lo. O lado “b” da minha mente está de volta.

Seppuku Espiritual

É curioso como, especialmente com a moda da batalha espiritual, o conceito da palavra de Deus como espada tem ganho popularidade. Em Efésios 6:17 Paulo chama seus leitores a tomarem "A espada do Espírito, que é a palavra de Deus", então a idéia da Palavra como um instrumento, como uma arma empregada contra o engano, é realmente válida. O problema é que esta passagem isolada não é o único uso deste conceito que encontramos na Bíblia. A idéia da Palavra cortante já existia bem antes de Paulo usá-la; de fato, bem antes da palavra em questão ser, necessariamente, a Palavra de Deus.

Ao falar de um companheiro traiçoeiro, Salmo 55:21 diz, em típico modo paralelístico, "Sua fala é macia como a manteiga, mas guerra está em seu coração; suas palavras são mais brandas que o azeite, todavia são espadas nuas." Esta imagem é repetida pelos salmos e em Provérbios: as palavras do do enganador, do blasfemador e do tolo são descritas como lâminas cortantes. "Eis que eles dão gritos com a boca; espadas estão em seus lábios." "Eles afiaram a sua língua como espadas; e armaram, por suas flechas, palavras amargas." "Há alguns cujas palavras são como pontas de espada, mas a língua dos sábios é saúde." Em todas estas passagens a palavra-como-espada é a palavra de engano e de escárnio; o rumor divisivo, o insulto humilhante, a mentira agradável aos ouvidos mas duplamente destrutiva. Segundo Tiago, a língua desregrada "contamina todo o corpo, inflama o curso da natureza, e é inflamada pelo inferno."

A palavra de Deus, por outro lado, é descrita desde o início como possessora de poderes criativos; Deus cria o universo ex nihilo com sua palavra, e sustenta toda a criação "pela palavra de seu poder." E como Pedro explica, este poder criativo da palavra opera na própria salvação, "Pois fostes de novo gerados, não de semente corruptível, mas da incorruptível, pela Palavra de Deus, viva e que permance para sempre." Agora, o homem é incapaz de realmente criar ou destruir qualquer coisa, e pode apenas usar suas palavras (e mais qualquer habilidade que ele possua)para manipular seu ambiente; suas palavras podem apenas enganar ou consolar. Onde a palavra do homem é tentativa, porém, a palavra de Deus é absolutamente, esmagadoramente eficaz, e cumpre seu propósito não por seu mérito em convencer alguém de alguma proposição, mas simplesmente por ser a expressão da vontade de Deus. Assim, se a Palavra de Deus tem poder irrestrito para criar, seu poder destrutivo é de igual maneira ilimitado. O Servo do Senhor tem uma boca "como uma espada afiada". O Apocalipse de João diz que Jesus, vindo em poder e juízo, "segurava sete estrelas em sua mão direita, e da sua boca saía uma aguda espada de dois gumes; e o seu rosto era como o sol, quando na sua força resplandesce." "Arrepende-te, pois! Ou em breve virei a ti, e contra eles batalharei com a espada da minha boca." "E da sua boca saía uma aguda espada, para ferir com ela as nações; e ele as regerá com cetro de ferro, e ele mesmo é o que pisa o lagar do vinho do furor e da ira do Deus Todo-poderoso." "E os demais foram mortos com a espada que saía da boca do que estava assentado sobre o cavalo, e todas as aves se fartaram das suas carnes."

Agora, alguns dirão que não podemos identificar esta palavra criativa (em Gênesis) e destrutiva (em Apocalipse) de Deus com a Bíblia em si, com estas palavras no papel que tenho em cima da mesa; e estão certos, são palavras diferentes, em ocasiões diferentes, para missões diferentes. Mas o Deus por trás de ambas é o mesmo; o poder mortificante e destrutivo da palavra Bíblica existe assim como seu poder vivificante, e a prova disto está em Hebreus 4:11-13. Ao falar do repouso que Deus tem para seu povo, e contrastando os que o rejeitaram com os que o terão na eternidade, o autor adverte: "Procuremos, pois, entrar naquele repouso, para que ninguém caia no mesmo exemplo de desobediência. Porque a palavra de Deus é viva, e eficaz, e mais penetrante que qualquer espada de dois gumes, e penetra até à divisão da alma, e do espírito, e das juntas e medulas, e é apta para discernir os pensamentos e intenções do coração. E não há criatura alguma encoberta diante dele; antes, todas as coisas estão nuas e patentes aos olhos daquele com quem temos de tratar."

Com duas alternativas pela frente- entrar no repouso ou receber o castigo da desobediência- o homem é confrontado pela Palavra de Deus; e a Palavra surge como uma força neutra ao homem, como um agente de juízo, como uma espada que destrincha o homem interiormente e expõe seus pensamentos, suas emoções, seus planos, suas desculpas. As defesas, os esquemas, as justificativas; todas as cascas anteriores são despidas, e a mente do homem é atingida diretamente pela revelação de Deus. A Palavra é, simultaneamente, a Escritura que aponta o caminho para o repouso de Deus e a espada que sai de sua boca, pronta para matar o velho homem para que o novo surja. A semente corruptível é destruída para que seja gerada a semente incorruptível, "pela Palavra de Deus, viva e que permanece para sempre."

E aqui está o ponto a que quero chegar: enquanto nós falamos da "Espada do Espírito" como algo que aplicamos ás idéias de outros, a própria revelação fala da Palavra como algo com que Deus nos fere, como a espada que nos retalha e expõe nossa podridão interior. Quando lemos a Bíblia, não somos meramente edificados; somos perfurados. Perfurados para que aquilo que temos dentro de nós seja exposto e destruído, para que sejamos recriados. Empunho a palavra como uma espada, mas a direciono precisamente contra meu peito, e cometo seppuku com a Espada do Espírito. A Palavra me fere, me destrincha, me abre por dentro. Para que diariamente eu morra, e diariamente Cristo viva em mim.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

O prejuízo da informação

Minha vantagem intelectual sobre os demais reside justamente no fato de eu me recusar a ler sobre aquilo a que me proponho pensar. Creio até que um Kant concordaria comigo neste particular, embora eu mesmo nunca lhe tenha lido uma página sequer. E com apenas isso excedo em inteligência a todo e qualquer acadêmico que tenha dedicado anos e anos ao estudo do filósofo alemão. (Notem como até conheço sua nacionalidade.) O erro de nossos dias é confiar na informação. É confiar nos informados. É interessar-se pelo que o especialista em política internacional acha disso e daquilo, enquanto o melhor caminho seria descobrir, por conta própria, o que diabos leva alguém a ocupar-se disso e daquilo. Porque o bom desenvolvimento intelectual depende do esforço imaginativo, depende da tentativa de se descobrir qual terá sido o argumento de determinado filósofo sobre determinado assunto — sem lê-lo. Pois, do contrário, tudo se tornaria demasiado simples. Tomaríamos um livro, passaríamos horas sobre ele, e acabaríamos todos, miseravelmente, professores universitários.

[Publicado também aqui.]

terça-feira, 16 de setembro de 2008

DFW

Eu nunca li Infinite Jest, nem tenho o livro; e suspeito que se o tivesse, ele estaria acumulando poeira junto com os outros clássicos nunca lidos de minha biblioteca. Mas eu amava os ensaios de David Foster Wallace; seu tom seco e divertidamente (e, é óbvio, falsamente) ingênuo, seus picos de entusiasmo por entre as ondas de nonchallance, sua perspicácia perturbadora, suas infames notas de rodapé. Wallace foi (desafiem-me, se quiserem) o melhor ensaísta de nosso tempo.

Existe um prazer quando se descobre um prazer novo- um autor de quem você nunca ouviu falar, uma música recém-lançada, uma fotografia, uma receita inusitada- que está ligado, de certa forma, a um sentimento de posse. Ao descobrir e amar uma nova música, eu a ponho num mp3 player e regozijo com ela; eu poderia ouví-la, se eu quisesse, sem parar, até o dia em que morrer. É uma pequena beleza que entrou em mundo e nunca mais sairá dele. Mais tarde, posso até enjoar daquela música, esquecer daquele livro, rejeitar aquele poema, mas naquele primeiro minuto há uma glória em pensar que fui enriquecido para sempre por esta nova alegria. Lembro distintamente de sentir esta alegria lendo uma coletânea do DFW na biblioteca da universidade, uns dois anos atrás, e de pensar: preciso ler Infinite Jest. E de pensar: o que será que ele vai escrever no futuro?

Bem, ele lançou mais uma coletânea (o excelente Consider the Lobster) e se matou. E relendo os poucos livros dele que eu tenho, me sinto empobrecido, triste; toda a antecipação de projetos futuros se foi, e com ela se foi parte do prazer em lê-lo, pelo menos por enquanto. As próprias palavras dele ficaram mais escuras; toda menção ao suicídio, ao sofrimento, á depressão parece adquirir tons proféticos, ameaçadores, famintos. Só me resta orar por sua alma, e por sua família. E, quem sabe, finalmente ler Infinite Jest.

domingo, 14 de setembro de 2008

Hooligans auf Wittenberg und anderen dingen

* Antes de mais nada: Acabo de descobrir que Gustavo Nagel (nosso Melanchthon para as massas) apagou seu blog justamente quando eu queria consultar um comentário que tinha feito nele há mais ou menos um ano e meio, mas agora está perdido para sempre. Raios. Ele não nos avisou disso, mas que diabos, faço a propaganda assim mesmo: vão para seu novo blog e deixem comentários generosos, elogiosos e admiráveis.

* É incrível como os inimigos de nossas causas muitas vezes nos inspiram mais do que seus proponentes. Reli este fim de semana o A New Christianity for a New World do bispo Spong, um livrinho com esperanças tão malignas para o cristianismo que me faz perguntar se teólogos pós-modernos são da mesma espécie que eu, e me senti envigorado. O apóstolo Paulo nos diz que precisamos pensar naquilo que é agradável, e justo, e santo; mas também é verdade que a peçonha de um servo de Satanás como Spong me envenena o espírito na medida certa, é como um tônico para a mente. Aliás, este é um princípio quase universalmente aplicável: se você quer ser feliz e edificado, leia os autores que te guiam, que você tem como norte, e leia autores novos ou semi-conhecidos, que ainda tem algo para ensinar ou algo para te entreter. Mas se você quer uma musculação para a mente, se quer uma pedra para afiar seu raciocínio, se quer fazer ferver seu sangue até um estado de prontidão e alerta, leia autores que você já examinou, e descobriu sem sombra de dúvida que são destrutivos ou idiotas. Assista um filme que você odeia, leia a autobiografia de um maldito canalha, leia os arquivos de um blog que você detesta (pode muito bem ser este blog agora mesmo), e veja como os seus pensamentos correm, acelerados, amolados, como pequenas cimitarras em sua cabeça. E este é o segredo da longevidade: nunca deixe seu sangue tranquilo, parado, congestionando suas veias com colesterol e coagulando em sua cabeça. Uma pequena infusão diária de irritação ou pura indignação para acelerar sua circulação e purificar seu sistema é mais eficaz e saudável que qualquer vitamina; e as pequenas cimitarras no seu sangue limpam as veias e, ainda por cima, embranquecem os dentes quando saem pela boca. Experimente.

* E enquanto estamos no assunto de livros irritantes, também li A Língua de Eulália, de Marcos Bagno, e achei a coisa mais condescente e falsamente piedosa (daquela piedade secular, mas duplamente melosa e sentimental) que já li na vida. Mas posso estar enganado, pode ser que seja um livro sincero, e o próprio Marcos Bagno recebe todos os melhores conselhos, admoestações e lições de vida de sua cozinheira banguela semi-analfabeta; mas ora vamos, não estou errado, é um livro não apenas ruim, mas falsamente escrito. Eulália (a cozinheira banguela semi-analfabeta do livro) é descrita como uma pessoa tão maravilhosa e corajosa que eu esperava que a qualquer momento ela sumiria da cozinha e apareceria milagrosamente a três crianças em Fátima; mas ao mesmo tempo, a doutora protagonista -que, condescentemente e insuportavelmente ensina as três meninas burras que é ok falar errado- é uma santa que chama sua empregada pra morar em casa com ela e trabalha enquanto ela cochila. O autor com uma mão exalta seu ideal do proletariado sábio e nobre, que fala português do jeito que quer, e com a outra glorifica onanisticamente a imagem de doutores tolerantes e sapientes como ele, que acham a norma culta uma conspiração das elites e fingem que os pelos de seus braços não arrepiam quando ouvem alguém dizer "probrema". E o leitor fica como as três alunas burras: presos nos sermões moralizantes, manipuladores e socialmente responsáveis da doutora.

* O lado negativo é que enquanto paro para ler livros ruins, fico sem tempo para ler os bons; e mais, fico sem ânimo. Quero ler A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna, mas toda vez que sento para ler, olho para o tamanho do livro e desanimo, e deixo para outro dia, preferindo reler algum favorito, algum bom velho livro. E sei que se isto continuar por mais tempo, o Pedra terminará na mesma pilha que Os Irmãos Karamazov, Guerra e Paz, A Montanha Mágica, e todos os outros clássicos da literatura® que joguei de lado pra ler Catch-22 outra vez. Preciso que alguém que já leu o livro diga para mim que ele realmente é tão bom quanto seu título, e vale a pena ser lido.

* Este é agora, oficialmente, um de meus clips favoritos. Aliás, proponho para esta semana (se meus companheiros de blog estiverem dispostos a algo frívolo e besta) alguns posts listando os vídeos de youtube que vocês tem assistido ultimamente. Vamos, será divertido.

* Divulgação: Dos dias 17 a 19 de Setembro ocorrerá a IV Semana da Teologia na Faculdade Boas Novas, em Manaus. O tema deste ano é a pregação bíblica, e a semana contará com palestras do pastor Jorge Max e de vários professores da FBN, inclusive este que vos escreve, que fará o papel de besta falando sobre pregação narrativa. Se moram em Manaus e tem algum tempo livre, apareçam por lá.

* Existem dois tipos de pessoas no mundo: pessoas que ficam gratas a Jesus por salvá-las de seus pecados e pessoas que se sentem indignadas com a presunção de Jesus, de chegar assim querendo salvar as pessoas. As pessoas do primeiro grupo abjetamente confessam seus pecados e se lançam ás misericórdias de Deus; as pessoas do segundo grupo se sentem ofendidas com a insinuação de que são pecadoras e fracas, criaturas necessitando de um salvador. E curiosamente, a acusação das pessoas do segundo grupo contra as do primeiro é de que estes pecadores confessos e miseráveis imploradores de perdão são hipócritas, orgulhosos, e moralistas auto-satisfeitos. Hmm.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

O planeta silencioso

Procurando no google por "Out of the Silent Planet", o primeiro romance da trilogia espacial de C.S. Lewis, descobri que há uma música do mesmo nome pelo Iron Maiden. Embora, pelo que eu tenha visto, eles não citam Lewis como influência, achei interessante que o tema da música é exatamente o inverso do tema dos livros. A música, de acordo com o vocalista da banda, é sobre "um monte de alienígenas que destruíram o seu planeta, e agora partiram de seu planeta silencioso para vir nos pegar."

Na série de Lewis, os planetas alienígenas Malacandra e Perelandra (Marte e Vênus, respectivamente) são domínios espetaculares; um planeta se aproximando de sua extinção, um planeta no qual a vida inteligente acabou de ser criada, mas ambos planetas vibrantes, no qual se encontra surpresa e comunhão, alteridade e fraternidade em cada lugar. São mundos regozijantes e reverentes; a terra, por outro lado, é o planeta silencioso, o planeta que deu errado, a ameaça constante a seus vizinhos. Da terra vem a morte de Marte, da terra vem o tentador da Eva de Vênus. O monstro não está vindo do espaço para nos pegar; o monstro somos nós.

E este é um tema que, devo confessar, não encontro muito na ficção científica, a humanidade como vilã e corruptora. Geralmente encontramos raças alienígenas vindo nos escravizar, nos destruir, e roubar nosso agradável planetinha. Mas se houver vida inteligente fora da terra, não há motivo para crer que eles caíram como nós caímos. Se houver vida extra-terrestre, nós somos um perigo maior a ela do que ela a nós. Pode ser que haja um cosmo inteiro de seres saudáveis e amorosos que deliberadamente nos evitam, porque nós somos um planeta de quarentena, e nosso silêncio não pode contaminar o universo.

Enfim, toda esta nerdice cristã. É que ainda estou com a Queda na cabeça. Ainda hoje posto algo mais interessante.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

O verdadeiro problema do Rio?

Hoje eu estava voltando do trabalho pra casa. Peguei o ônibus ali na estação de Bangu e qual não é o meu espanto quando eu vejo que a cobradora está fumando. Mais à frente tenho a infelicidade de ver um ônibus vindo na direção contrária onde o motorista tinha um ponto luminoso vermelho no meio da boca ¬¬.

Esses dias estava andando na rua, no horário de almoço com alguns colegas de trabalho. Um deles, um rapaz jovem, super bem informado, daqueles de saber as notícias 3 minutos após elas terem sidos lançadas no portal mais obscuro da internet, ótimos conhecimentos de informática, lucidez perfeita, raciocínio lógico rápido e etc, etc, e tal... pegou o papel de bala e jogou no chão! Assim como mais trinta mil pessoas que fazem isso todos os dias em todos os lugares do Rio.

De vez em sempre dá pra gente flagrar alguém "mijando" num canto qualquer em plena luz do dia. Não é à toa que o centro do Rio possui um cheiro todo característico (que por sinal, não é só de xixi).

É incrível a falta de EDUCAÇÃO de grande parte da população que vive no Rio. E através do que eu acabei de dizer ali em cima, não é um problema só das classes menos privilegiadas. Infelizmente, entra todo mundo aí no bolo.

O morador do Rio não tem educação e joga muito lixo no chão. Existem locais horrivelmente sujos e o Rio se torna uma cidade mais suja. O morador do Rio não sabe se cuidar direito e torna-se mais propenso a doenças. Os hospitais já não são bons (nada bons) mas com o número absurdo de doentes, o quadro piora. Os motoristas do Rio não tem educação. É um cortando o outro e fazendo as coisas mais horríveis no transito (quem já andou de ônibus aqui sabe do que eu estou falando), e por consequência, o tráfego no Rio é horrível, mas não era pra ser. Acaba que todo problema chato e ridículo do Rio cai nas costas da falta de educação da população, seja ela pobre ou rica. As pessoas continuam jogando papel no chão, fumando onde não deve, mijando fora de um banheiro... Às vezes é desesperador pensar numa solução pra isso tudo.

A gente devia poder confiar nos governantes, mas eu não consigo pensar que eles vão realmente dar um jeito nisso. A educação no Rio está sucateada, bem como a maioria das frentes de trabalho por aqui. O Rio está abandonado...

P.S.: Eu sei que este é o problema da maioria dos locais no Brasil. Este texto poderia ser muito melhor, mas não estou inspirado hoje e só queria desabafar.

π

domingo, 7 de setembro de 2008

Um post para Filipe Garcia, do blog http://discipulum.blogspot.com

Olá, Filipe.

Alguns mêses atrás, enquanto buscando por coisas inúteis no google, decidi buscar aquela mais inútil das coisas; referências ao meu blog. Para minha surpresa, havia outro blog com o nome de Pensamentos Cativos, namely, o seu. Achei uma coincidência agradável porque, crente supersticioso que sou, referências bíblicas me agradam, e decidi descobrir mais sobre o cara que teve a mesma idéia que eu na hora de dar um nome pro seu site. Não levei mais do que três minutos pra descobrir que a similaridade dos nomes não era uma coincidência. Você copiou o nome de um projeto que criei com alguns amigos, que durou duas pequenas edições e ressuscitou este ano com este blog. E pra descobrir seu plágio, só bastou ler o primeiro post de seu blog. É o mesmíssimo texto que escrevi como prefácio do Pensamentos Cativos original, e hoje é a missão do blog. Está lá em baixo, em preto.

Acima do texto, tal como se encontra em seu blog, está escrito em negrito "Escrito por Filipe Garcia". O que não é uma mentira completa; você realmente modificou o texto. Para ser preciso, você mudou exatamente uma coisa: as afirmações feitas no plural foram modificadas para o singular. Uma declaração de um grupo, um posicionamento meu e de meus amigos, uma proposta feita por quatro pessoas, foi reduzida ao pensamento original (quase escrevi esse original entre aspinhas sarcásticas, mas resisti o impulso) e solitário de um blogueiro. E que pequenos detalhes deliciosos nos comentários. Gostei em especial do comentário de Felipe Fanuel, no qual ele discorda com sua (resisto novamente as aspinhas sarcásticas) fé excludente, e pergunta se realmente vale a pena abrir um blog para difundir idéias que, levadas ao extremo, levam ao fundamentalismo e extremismo. Ah, o comentário dele me fez sorrir, porque o "conservadorismo militante, cego, e estúpido" é, bem, o nosso campo aqui. Alguns mais cegos do que outros, e ninguém mais estúpido do que eu: mas se é assim que minha fé vai ser definida, vestirei o insulto no peito como se fosse uma medalha. Acho o Felipe Fanuel uma boa pessoa, mas é assegurador ver que um texto meu o deixou um pouco desconfortável. Mesmo presente no blog de uma fuinha plagiadora e tão espertamente crítica de crentes como você.

Na ocasião, deixei um comentário secamente comentando sobre a autoria do post, e o Nagel deixou um comentário pedindo que você, well, fosse honesto. Você deletou ambos os comentários, e eu deixei pra lá; não é tão importante, e que diabos, quem se importa. Mas uma amiga levantou assunto novamente, perguntando desconcertada porque eu roubei o nome de um blog que já existia; e isto me deixou um pouco irritado. E por isto gasto estes exatos vinte e dois minutos de minha vida- dá para ver que foram vinte e dois minutos porque foi a duração inteira de um episódio dos Simpsons- para pedir que você, sei lá, remova o post; e posto aqui, pra não ter outro comentário deletado. Ia pedir para que mudasse o nome do blog, mas ah, nós roubamos de Paulo pra início de conversa, e ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão.

Um abraço,

João.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Invasores de Corpos

Não digam pra ninguém, mas acho que os alienígenas tomaram o corpo da Norma, visto que ela anda por aí lendo e elogiando (eu sei, eu sei, veja como os pelos do meu braço estão todos arrepiados) o blog do Caetano Veloso. Sim, aquele Caetano Veloso. Eu sabia que algo estava errado- já tinha visto ela por aí louvando o Glauber Rocha, e anteontem afirmando que o correto é dizer "estadunidense", já que americanos somos todos nós, mas não prestei atenção. Agora estou com medo. Medo de que serei o próximo. Se me virem aqui elogiando o Gerald Thomas, ou postando letras de música do Arnaldo Antunes, lembrem que não sou eu, é um alienígena que tomou meu corpo. E matem-me o mais rápido possível.

Um posicionamento sobre a disputa presidencial americana

Todo o apoio do PC vai para os republicanos John McCain e Sarah Palin. Por que motivo? Porque pesquisando sobre esta corrida de "primeiros" históricos- toda a disputa interna dos democratas foi sobre quem merece ser presidente primeiro, um negro ou uma mulher- eu descobri que a Palin é membra da Assembléia de Deus americana. Uma vice-presidente dos EUA assembleiana! Eis um "pela primeira vez na história americana" no qual eu votaria.

Se algum leitor aí estiver no cativeiro babilônico (do qual eu mesmo só retornei ano passado), faça seu dever para com a história, e ponha uma pentecostal na casa branca. É nosso destino manifesto denominacional!

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

O Eleitor e as Duas Opções

O verdadeiro mal de nosso sistema político partidário é frequentemente mal afirmado. Ele foi mal afirmado pelo Lorde Rosebery, quando ele disse que o sistema impede que os melhores homens se dediquem á política, e que isto encoraja um conflito fanático. Eu duvido que os melhores homens se dedicariam á política de qualquer modo; os melhores homens se dedicam a criação de porcos, e a bebês, e coisas deste tipo. E quanto ao conflito fanático entre os partidos, eu queria que houvesse mais dele. O perigo real do sistema bi-partidário, com suas duas políticas, é que os partidos limitam a perspectiva do cidadão comum. Eles o fazem estéril ao invés de criativo, porque eles nunca lhe permitem fazer qualquer coisa exceto preferir uma política pré-existente ou outra. Nós não teremos democracia real quando as soluções forem escolhidas pelo povo; teremos democracia real quando o problema for escolhido pelo povo. O homem comum deverá decidir não apenas como ele irá votar, mas sobre o que ele irá votar.

É isto que traz alguma fraqueza ás muitas aspirações de extender o sufrágio; isto é, deixando de lado todas as questões abstratas de justiça, o problema da democracia atual não é a pequenez ou a grandeza numérica da constituência. O problema não está na quantidade de eleitores, mas na qualidade daquilo no qual eles estão votando. Duas alternativas lhes são apresentadas pelas casas poderosas e pela mais alta classe de políticos. Duas estradas são abertas aos eleitores; mas eles precisam escolher uma ou outra. O eleitorado não pode ter o que ele quiser; pode apenas escolher dentre as opções oferecidas. Para seguir o processo em sua prática, poderiamos colocá-lo desta maneira: As sufragetes (se podemos julgar pela frequência em que tocam sua campainha) desejam fazer algo com o senhor Asquith. Eu não faço idéia do que é. Digamos que (para os fins deste argumento) elas querem pintá-lo de verde. Suponhamos que é apenas por este simples motivo que elas estão sempre buscando audiências privadas com ele; é um propósito tão válido quanto qualquer outro que posso imaginar para tais encontros. Agora, é possível que o partido governista tome uma posição política ativa que pinte o senhor Asquith de verde; talvez o governo dê esta reforma uma posição eminente em sua agenda política. E então o partido que está na oposição assumiria uma outra posição; não a posição de deixar o sr. Asquith em paz (o que seria considerado perigosamente revolucionário), mas alguma outra alternativa, como pintá-lo de vermelho. E então ambos os partidos se jogariam sobre o povo, e ambos gritariam que seu apelo agora se dirigia ao César da Democracia. Uma atmosfera escura e dramática de crise surgiria de ambos os lados; flechas de sátira voariam, e espadas de eloquência cintilariam. Os verdes diriam que os que queriam pintar o sr. Asquith de vermelho são os socialistas e os libertinos, pois estes, se pudessem, pintariam a cidade inteira de vermelho. Socialistas responderiam, indignados, que o socialismo é o contrário da libertinagem, e que eles buscavam pintar o sr. Asquith de vermelho apenas para que ele pudesse se parecer com uma caixa de correio vermelha, que tipifica o controle estatal. Os verdes, por sua vez, negariam veementemente a acusação tão frequentemente levantada contra eles pelos vermelhos; eles negariam que buscavam pintar o sr. Asquith de verde para que ele ficasse invisível nos assentos verdes da Câmara dos Comuns, do modo como alguns animais assustados se camuflam com seu ambiente.

Talvez haveriam lutas nas ruas, e uma proliferação de faixas, bandeiras e botões, de ambas as cores. Uma multidão cantaria, "Keep the Red Flag Flying", e a outra, "The Wearing of the Green"*. Mas quando o ultimo esforço for feito, e quando o momento final chegar, quando duas multidões aguardarem no escuro, do lado de fora de um prédio público para ouvir o resultado da eleição, então ambos os lados diriam que naquela hora a democracia fez exatamente o que queria. Mas isto talvez não seria a verdade. Talvez a própria nação, levantando sua cabeça em terrível solidão e liberdade, gostaria realmente que o sr. Asquith fosse pintado de azul pálido. A democracia verdadeira do país, se lhe fosse permitida criar um plano político por si só, talvez desejasse o sr. Asquith preto com bolinhas rosas. Talvez a população teria desejado mantê-lo como ele está agora. Mas um enorme aparato de riqueza, poder, e publicações impossibilitou a chance de surgirem quaisquer outras propostas, mesmo se a população realmente as preferisse. Nenhum candidato irá apoiar a proposta de pintar o sr. Asquith de bolinhas; pois candidatos geralmente precisam tirar dinheiro para concorrer de seus próprios bolsos, ou dos cofres do partido, e no partido as bolinhas não são a moda. Nenhum homem em posição política irá se comprometer com a teoria do sr. Asquith azul pálido; e portanto ela nunca poderá ser uma proposta do governo, e portanto nunca ocorrerá.

Quase todos os grandes jornais, tanto os pomposos quanto os frívolos, declararão dogmaticamente dia após dia, até que mais ou menos todos creiam, que vermelho e verde são as únicas duas cores na caixa de tintas. "O Observador" dirá: "Ninguém que conhece a sólida estrutura política, e enfáticos primeiros princípios, de um povo imperial pode imaginar por uma segundo que há qualquer meio termo nesta questão; precisamos cumprir nosso destino manifesto racial e coroar o edifício dos séculos com a augusta figura de um premier verde, ou precisamos abandonar nosso legado, quebrar nossas promessas ao império, lançar-nos á anarquia final, e permitir que a demoníaca e flamejante figura de um premier vermelho paire sobre nossa dissolução e nossa perdição." O "Correio Diário" diria: "Não há ponto intermediário nesta discussão; a escolha precisa ser verde ou vermelho. Desejamos ver todo cidadão honesto trajando uma cor a outra." E então algum engraçadinho iria começar com os trocadilhos, dizendo que o "Correio Diário" quer que seus leitores sejam verdes apenas para que seus lucros não caiam no vermelho**. Mas ninguém ousaria sussurrar que existe tal cor como o amarelo.

Pelos motivos de pura lógica, é mais fácil argumentar com exemplos bobos do que com exemplos sensíveis; isto é porque exemplos bobos são simples. Mas eu poderia citar casos graves e concretos do tipo de coisa a qual me refiro. Ao final da Guerra Boer, ambos os partidos insistiam perpetuamente em todo panfleto e discurso que a anexação da África do Sul era inevitável, e que era apenas uma questão de qual partido iria oficiar o processo. Mas a anexação não era nem um pouco inevitável; seria perfeitamente fácil fazer as pazes com os Boers, tal como é comum que nações cristãs façam as pazes com seus inimigos. Pessoalmente, creio que seria muito melhor se nós nunca tivessemos feito a anexação; até por motivos puramente egoístas, teria sido melhor para nosso prestígio e para nossos bolsos. Isto é apenas uma questão de opinião. Mas o óbvio é que a anexação não foi inevitável. Esta não era, como foi dito, a única alternativa; haviam várias outras alternativas. Haviam várias outras cores de tinta. Novamente, na discussão sobre o socialismo, é repetidamente esfregada na mente pública a afirmação de que precisamos escolher entre o socialismo e uma coisa horrível que eles chamam de individualismo. Eu não sei o que esta alternativa significa, mas parece dizer que todo aquele com a sorte de ter alguma riqueza deve adotar a filosofia do egoísta, e proclamar o quão bom ele é por servir a si mesmo.

As pessoas calmamente assumem que únicos tipos de sociedade possível são a sociedade coletivista e a sociedade presente, a sociedade de nosso tempo que é mais ou menos como uma pilha viva de adubo. Nem preciso dizer que eu preferiria o socialismo ao presente estado da sociedade; eu preferiria até a anarquia ao presente estado da sociedade. Mas simplesmente não é verdadeiro dizer que o coletivismo é o único outro esquema possível que poderia trazer uma ordem mais igual. Um coletivista tem o perfeito direito de pensar que o coletivismo é o único esquema coerente; mas ele não pode afirmar que é o único esquema plausível ou possível. Poderiamos ter a propriedade nas mãos dos pequenos agricultores; poderiamos ter o compromisso de Henry George; poderiamos ter um número de pequenas comunas; poderiamos ter cooperação; poderiamos ter comunismo anárquico; poderiamos ter uma centena de coisas. Não estou dizendo que qualquer uma destas direções é a correta, embora eu não consiga imaginar que qualquer uma delas poderia ser pior do que a sociedade-manicômio presente, com seus ricos opulentos e pobres torturados; mas eu digo que o fato de que a mente cívica não está, num sentido amplo, cônscia destas possibilidades é uma prova viva de quão rígidas e estreitas são as alternativas oferecidas á sociedade. A mente da sociedade não é livre ou desperta o suficiente para perceber o quanto ela tem o mundo inteiro na sua frente. Existem pelo menos dez soluções para os problemas da educação hoje, e ninguém sabe qual delas o povo realmente quer, porque ao povo só é permitido escolher entre as duas opções oferecidas pelo governo e pela oposição. Existem dez soluções ao problema da bebida, e ninguém sabe o que nossa democracia deseja; pois só se permite que a democracia enfrente uma lei de licenciamento de cada vez.

Então é esta a situação: o povo tem o direito de responder perguntas, mas não tem o direito de fazê-las. Ainda é apenas a aristocracia política que faz as perguntas. E não seria irracionalmente cínico de nossa parte imaginar que a aristocracia sempre será muito cuidadosa com as questões que ela levanta. E se o perigoso conforto e auto-congratulação da Inglaterra moderna continuarem por muito mais tempo, haverá menos valor democrático numa eleição inglesa do que numa Saturnália dos escravos romanos. Pois a classe poderosa irá sempre escolher dois planos de curso, ambas seguras para si mesma, e dará ao povo a gratificação de escolher uma opção ou a outra. O senhor de escravos tomará duas alternativas tão parecidas que ele mesmo não se importaria em escolher entre elas com os olhos vedados; e então, para se entreter, permitirá que seus escravos escolham entre elas.

-- G.K. Chesterton, A Miscellany of Men

* Pensei em colocar títulos de músicas brasileiras que evocam as duas cores, mas deixa pra lá.

** Não consegui traduzir o trocadilho original ("The Daily Mail wants its readers to be green, but its paper to be read"), então inventei outro.