O verdadeiro mal de nosso sistema político partidário é frequentemente mal afirmado. Ele foi mal afirmado pelo Lorde Rosebery, quando ele disse que o sistema impede que os melhores homens se dediquem á política, e que isto encoraja um conflito fanático. Eu duvido que os melhores homens se dedicariam á política de qualquer modo; os melhores homens se dedicam a criação de porcos, e a bebês, e coisas deste tipo. E quanto ao conflito fanático entre os partidos, eu queria que houvesse mais dele. O perigo real do sistema bi-partidário, com suas duas políticas, é que os partidos limitam a perspectiva do cidadão comum. Eles o fazem estéril ao invés de criativo, porque eles nunca lhe permitem fazer qualquer coisa exceto preferir uma política pré-existente ou outra. Nós não teremos democracia real quando as soluções forem escolhidas pelo povo; teremos democracia real quando o problema for escolhido pelo povo. O homem comum deverá decidir não apenas como ele irá votar, mas sobre o que ele irá votar.
É isto que traz alguma fraqueza ás muitas aspirações de extender o sufrágio; isto é, deixando de lado todas as questões abstratas de justiça, o problema da democracia atual não é a pequenez ou a grandeza numérica da constituência. O problema não está na quantidade de eleitores, mas na qualidade daquilo no qual eles estão votando. Duas alternativas lhes são apresentadas pelas casas poderosas e pela mais alta classe de políticos. Duas estradas são abertas aos eleitores; mas eles precisam escolher uma ou outra. O eleitorado não pode ter o que ele quiser; pode apenas escolher dentre as opções oferecidas. Para seguir o processo em sua prática, poderiamos colocá-lo desta maneira: As sufragetes (se podemos julgar pela frequência em que tocam sua campainha) desejam fazer algo com o senhor Asquith. Eu não faço idéia do que é. Digamos que (para os fins deste argumento) elas querem pintá-lo de verde. Suponhamos que é apenas por este simples motivo que elas estão sempre buscando audiências privadas com ele; é um propósito tão válido quanto qualquer outro que posso imaginar para tais encontros. Agora, é possível que o partido governista tome uma posição política ativa que pinte o senhor Asquith de verde; talvez o governo dê esta reforma uma posição eminente em sua agenda política. E então o partido que está na oposição assumiria uma outra posição; não a posição de deixar o sr. Asquith em paz (o que seria considerado perigosamente revolucionário), mas alguma outra alternativa, como pintá-lo de vermelho. E então ambos os partidos se jogariam sobre o povo, e ambos gritariam que seu apelo agora se dirigia ao César da Democracia. Uma atmosfera escura e dramática de crise surgiria de ambos os lados; flechas de sátira voariam, e espadas de eloquência cintilariam. Os verdes diriam que os que queriam pintar o sr. Asquith de vermelho são os socialistas e os libertinos, pois estes, se pudessem, pintariam a cidade inteira de vermelho. Socialistas responderiam, indignados, que o socialismo é o contrário da libertinagem, e que eles buscavam pintar o sr. Asquith de vermelho apenas para que ele pudesse se parecer com uma caixa de correio vermelha, que tipifica o controle estatal. Os verdes, por sua vez, negariam veementemente a acusação tão frequentemente levantada contra eles pelos vermelhos; eles negariam que buscavam pintar o sr. Asquith de verde para que ele ficasse invisível nos assentos verdes da Câmara dos Comuns, do modo como alguns animais assustados se camuflam com seu ambiente.
Talvez haveriam lutas nas ruas, e uma proliferação de faixas, bandeiras e botões, de ambas as cores. Uma multidão cantaria, "Keep the Red Flag Flying", e a outra, "The Wearing of the Green"*. Mas quando o ultimo esforço for feito, e quando o momento final chegar, quando duas multidões aguardarem no escuro, do lado de fora de um prédio público para ouvir o resultado da eleição, então ambos os lados diriam que naquela hora a democracia fez exatamente o que queria. Mas isto talvez não seria a verdade. Talvez a própria nação, levantando sua cabeça em terrível solidão e liberdade, gostaria realmente que o sr. Asquith fosse pintado de azul pálido. A democracia verdadeira do país, se lhe fosse permitida criar um plano político por si só, talvez desejasse o sr. Asquith preto com bolinhas rosas. Talvez a população teria desejado mantê-lo como ele está agora. Mas um enorme aparato de riqueza, poder, e publicações impossibilitou a chance de surgirem quaisquer outras propostas, mesmo se a população realmente as preferisse. Nenhum candidato irá apoiar a proposta de pintar o sr. Asquith de bolinhas; pois candidatos geralmente precisam tirar dinheiro para concorrer de seus próprios bolsos, ou dos cofres do partido, e no partido as bolinhas não são a moda. Nenhum homem em posição política irá se comprometer com a teoria do sr. Asquith azul pálido; e portanto ela nunca poderá ser uma proposta do governo, e portanto nunca ocorrerá.
Quase todos os grandes jornais, tanto os pomposos quanto os frívolos, declararão dogmaticamente dia após dia, até que mais ou menos todos creiam, que vermelho e verde são as únicas duas cores na caixa de tintas. "O Observador" dirá: "Ninguém que conhece a sólida estrutura política, e enfáticos primeiros princípios, de um povo imperial pode imaginar por uma segundo que há qualquer meio termo nesta questão; precisamos cumprir nosso destino manifesto racial e coroar o edifício dos séculos com a augusta figura de um premier verde, ou precisamos abandonar nosso legado, quebrar nossas promessas ao império, lançar-nos á anarquia final, e permitir que a demoníaca e flamejante figura de um premier vermelho paire sobre nossa dissolução e nossa perdição." O "Correio Diário" diria: "Não há ponto intermediário nesta discussão; a escolha precisa ser verde ou vermelho. Desejamos ver todo cidadão honesto trajando uma cor a outra." E então algum engraçadinho iria começar com os trocadilhos, dizendo que o "Correio Diário" quer que seus leitores sejam verdes apenas para que seus lucros não caiam no vermelho**. Mas ninguém ousaria sussurrar que existe tal cor como o amarelo.
Pelos motivos de pura lógica, é mais fácil argumentar com exemplos bobos do que com exemplos sensíveis; isto é porque exemplos bobos são simples. Mas eu poderia citar casos graves e concretos do tipo de coisa a qual me refiro. Ao final da Guerra Boer, ambos os partidos insistiam perpetuamente em todo panfleto e discurso que a anexação da África do Sul era inevitável, e que era apenas uma questão de qual partido iria oficiar o processo. Mas a anexação não era nem um pouco inevitável; seria perfeitamente fácil fazer as pazes com os Boers, tal como é comum que nações cristãs façam as pazes com seus inimigos. Pessoalmente, creio que seria muito melhor se nós nunca tivessemos feito a anexação; até por motivos puramente egoístas, teria sido melhor para nosso prestígio e para nossos bolsos. Isto é apenas uma questão de opinião. Mas o óbvio é que a anexação não foi inevitável. Esta não era, como foi dito, a única alternativa; haviam várias outras alternativas. Haviam várias outras cores de tinta. Novamente, na discussão sobre o socialismo, é repetidamente esfregada na mente pública a afirmação de que precisamos escolher entre o socialismo e uma coisa horrível que eles chamam de individualismo. Eu não sei o que esta alternativa significa, mas parece dizer que todo aquele com a sorte de ter alguma riqueza deve adotar a filosofia do egoísta, e proclamar o quão bom ele é por servir a si mesmo.
As pessoas calmamente assumem que únicos tipos de sociedade possível são a sociedade coletivista e a sociedade presente, a sociedade de nosso tempo que é mais ou menos como uma pilha viva de adubo. Nem preciso dizer que eu preferiria o socialismo ao presente estado da sociedade; eu preferiria até a anarquia ao presente estado da sociedade. Mas simplesmente não é verdadeiro dizer que o coletivismo é o único outro esquema possível que poderia trazer uma ordem mais igual. Um coletivista tem o perfeito direito de pensar que o coletivismo é o único esquema coerente; mas ele não pode afirmar que é o único esquema plausível ou possível. Poderiamos ter a propriedade nas mãos dos pequenos agricultores; poderiamos ter o compromisso de Henry George; poderiamos ter um número de pequenas comunas; poderiamos ter cooperação; poderiamos ter comunismo anárquico; poderiamos ter uma centena de coisas. Não estou dizendo que qualquer uma destas direções é a correta, embora eu não consiga imaginar que qualquer uma delas poderia ser pior do que a sociedade-manicômio presente, com seus ricos opulentos e pobres torturados; mas eu digo que o fato de que a mente cívica não está, num sentido amplo, cônscia destas possibilidades é uma prova viva de quão rígidas e estreitas são as alternativas oferecidas á sociedade. A mente da sociedade não é livre ou desperta o suficiente para perceber o quanto ela tem o mundo inteiro na sua frente. Existem pelo menos dez soluções para os problemas da educação hoje, e ninguém sabe qual delas o povo realmente quer, porque ao povo só é permitido escolher entre as duas opções oferecidas pelo governo e pela oposição. Existem dez soluções ao problema da bebida, e ninguém sabe o que nossa democracia deseja; pois só se permite que a democracia enfrente uma lei de licenciamento de cada vez.
Então é esta a situação: o povo tem o direito de responder perguntas, mas não tem o direito de fazê-las. Ainda é apenas a aristocracia política que faz as perguntas. E não seria irracionalmente cínico de nossa parte imaginar que a aristocracia sempre será muito cuidadosa com as questões que ela levanta. E se o perigoso conforto e auto-congratulação da Inglaterra moderna continuarem por muito mais tempo, haverá menos valor democrático numa eleição inglesa do que numa Saturnália dos escravos romanos. Pois a classe poderosa irá sempre escolher dois planos de curso, ambas seguras para si mesma, e dará ao povo a gratificação de escolher uma opção ou a outra. O senhor de escravos tomará duas alternativas tão parecidas que ele mesmo não se importaria em escolher entre elas com os olhos vedados; e então, para se entreter, permitirá que seus escravos escolham entre elas.
-- G.K. Chesterton, A Miscellany of Men
* Pensei em colocar títulos de músicas brasileiras que evocam as duas cores, mas deixa pra lá.
** Não consegui traduzir o trocadilho original ("The Daily Mail wants its readers to be green, but its paper to be read"), então inventei outro.
quarta-feira, 3 de setembro de 2008
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