sábado, 20 de setembro de 2008

Seppuku Espiritual

É curioso como, especialmente com a moda da batalha espiritual, o conceito da palavra de Deus como espada tem ganho popularidade. Em Efésios 6:17 Paulo chama seus leitores a tomarem "A espada do Espírito, que é a palavra de Deus", então a idéia da Palavra como um instrumento, como uma arma empregada contra o engano, é realmente válida. O problema é que esta passagem isolada não é o único uso deste conceito que encontramos na Bíblia. A idéia da Palavra cortante já existia bem antes de Paulo usá-la; de fato, bem antes da palavra em questão ser, necessariamente, a Palavra de Deus.

Ao falar de um companheiro traiçoeiro, Salmo 55:21 diz, em típico modo paralelístico, "Sua fala é macia como a manteiga, mas guerra está em seu coração; suas palavras são mais brandas que o azeite, todavia são espadas nuas." Esta imagem é repetida pelos salmos e em Provérbios: as palavras do do enganador, do blasfemador e do tolo são descritas como lâminas cortantes. "Eis que eles dão gritos com a boca; espadas estão em seus lábios." "Eles afiaram a sua língua como espadas; e armaram, por suas flechas, palavras amargas." "Há alguns cujas palavras são como pontas de espada, mas a língua dos sábios é saúde." Em todas estas passagens a palavra-como-espada é a palavra de engano e de escárnio; o rumor divisivo, o insulto humilhante, a mentira agradável aos ouvidos mas duplamente destrutiva. Segundo Tiago, a língua desregrada "contamina todo o corpo, inflama o curso da natureza, e é inflamada pelo inferno."

A palavra de Deus, por outro lado, é descrita desde o início como possessora de poderes criativos; Deus cria o universo ex nihilo com sua palavra, e sustenta toda a criação "pela palavra de seu poder." E como Pedro explica, este poder criativo da palavra opera na própria salvação, "Pois fostes de novo gerados, não de semente corruptível, mas da incorruptível, pela Palavra de Deus, viva e que permance para sempre." Agora, o homem é incapaz de realmente criar ou destruir qualquer coisa, e pode apenas usar suas palavras (e mais qualquer habilidade que ele possua)para manipular seu ambiente; suas palavras podem apenas enganar ou consolar. Onde a palavra do homem é tentativa, porém, a palavra de Deus é absolutamente, esmagadoramente eficaz, e cumpre seu propósito não por seu mérito em convencer alguém de alguma proposição, mas simplesmente por ser a expressão da vontade de Deus. Assim, se a Palavra de Deus tem poder irrestrito para criar, seu poder destrutivo é de igual maneira ilimitado. O Servo do Senhor tem uma boca "como uma espada afiada". O Apocalipse de João diz que Jesus, vindo em poder e juízo, "segurava sete estrelas em sua mão direita, e da sua boca saía uma aguda espada de dois gumes; e o seu rosto era como o sol, quando na sua força resplandesce." "Arrepende-te, pois! Ou em breve virei a ti, e contra eles batalharei com a espada da minha boca." "E da sua boca saía uma aguda espada, para ferir com ela as nações; e ele as regerá com cetro de ferro, e ele mesmo é o que pisa o lagar do vinho do furor e da ira do Deus Todo-poderoso." "E os demais foram mortos com a espada que saía da boca do que estava assentado sobre o cavalo, e todas as aves se fartaram das suas carnes."

Agora, alguns dirão que não podemos identificar esta palavra criativa (em Gênesis) e destrutiva (em Apocalipse) de Deus com a Bíblia em si, com estas palavras no papel que tenho em cima da mesa; e estão certos, são palavras diferentes, em ocasiões diferentes, para missões diferentes. Mas o Deus por trás de ambas é o mesmo; o poder mortificante e destrutivo da palavra Bíblica existe assim como seu poder vivificante, e a prova disto está em Hebreus 4:11-13. Ao falar do repouso que Deus tem para seu povo, e contrastando os que o rejeitaram com os que o terão na eternidade, o autor adverte: "Procuremos, pois, entrar naquele repouso, para que ninguém caia no mesmo exemplo de desobediência. Porque a palavra de Deus é viva, e eficaz, e mais penetrante que qualquer espada de dois gumes, e penetra até à divisão da alma, e do espírito, e das juntas e medulas, e é apta para discernir os pensamentos e intenções do coração. E não há criatura alguma encoberta diante dele; antes, todas as coisas estão nuas e patentes aos olhos daquele com quem temos de tratar."

Com duas alternativas pela frente- entrar no repouso ou receber o castigo da desobediência- o homem é confrontado pela Palavra de Deus; e a Palavra surge como uma força neutra ao homem, como um agente de juízo, como uma espada que destrincha o homem interiormente e expõe seus pensamentos, suas emoções, seus planos, suas desculpas. As defesas, os esquemas, as justificativas; todas as cascas anteriores são despidas, e a mente do homem é atingida diretamente pela revelação de Deus. A Palavra é, simultaneamente, a Escritura que aponta o caminho para o repouso de Deus e a espada que sai de sua boca, pronta para matar o velho homem para que o novo surja. A semente corruptível é destruída para que seja gerada a semente incorruptível, "pela Palavra de Deus, viva e que permanece para sempre."

E aqui está o ponto a que quero chegar: enquanto nós falamos da "Espada do Espírito" como algo que aplicamos ás idéias de outros, a própria revelação fala da Palavra como algo com que Deus nos fere, como a espada que nos retalha e expõe nossa podridão interior. Quando lemos a Bíblia, não somos meramente edificados; somos perfurados. Perfurados para que aquilo que temos dentro de nós seja exposto e destruído, para que sejamos recriados. Empunho a palavra como uma espada, mas a direciono precisamente contra meu peito, e cometo seppuku com a Espada do Espírito. A Palavra me fere, me destrincha, me abre por dentro. Para que diariamente eu morra, e diariamente Cristo viva em mim.

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