Que é quase do tamanho do assunto inteiro, é sua parte mais confusa. Primeiro, eu não imaginava que fosse necessário descer a este nível de detalhamento. Pois bem: Há uma coisa chamada liberalismo que se pode aplicar à política prática; e outra que se pode chamar liberalismo econômico. O primeiro não deriva, e não depende, do liberalismo filosófico, mas o segundo sim.
As perguntas que se fazem, em política prática, são as seguintes: O que é necessário para a sociedade? O que é necessário para as pessoas? Feitas estas perguntas, chega a hora da mais importante em nosso confuso tempo: Quem o fará?
É neste domínio que se batem totalitaristas e anarquistas, e todos os ocupantes de sua escala. Quem vai oferecer linhas de trem, serviços telefônicos e estradas de rodagem? Quem vai garantir o vestuário e a alimentação das famílias? Quem vai escolher a cor das paredes da casa, o estilo dos móveis e a hora de dormir das crianças?
O liberal dirá que nada disso deve ser feito pelo governo. E nós também. Mas um liberal aceitará que uma empresa, possúida por um homem, faça não somente o trem e o telefone, mas também a escolha das cores da parede e da hora de dormir de seus filhos. E a isso dará o nome de individualismo, dizendo que nele o governo não manda.
Uma distinção que quase nunca se faz, para bem analisar esta questão, é a existente entre pessoa e indivíduo. O próprio Gustavo Corção diz, em Três Alqueires e uma Vaca, que não tenta essa distinção por temer não saber desenvolvê-la à Maritain, autor de quem ele aprendeu neste assunto. Vamos, portanto, tomar aqui apenas a definição de pessoa como um todo aberto, existencial até, em comércio (para não dizer comunhão e exasperar os céticos) com as outras pessoas, enquanto pessoas e enquanto sociedade. E indivíduo seria um todo fechado, que não comunga e nem mesmo possui qualquer comércio com as outras pessoas, exceto o da disputa.
Trata-se, portanto, de escolher para a sociedade uma definição que vá combinar com o que ali sejam as pessoas. Se a cidade é obra comum dos homens, e posse comum dos homens, ou se é a aglomeração das obras privadas dos indivíduos, mesmo que associados (e com que fim?).
Ao adotarmos a idéia de obra comum e posse comum, afastamo-nos imediatamente do capitalismo e do comunismo. No capitalismo, apesar da liberdade de domínio, a posse é uma coisa rara - e é essa sua maior vergonha. O maior fracasso de nosso tempo não acontece nas alfândegas e nos bancos internacionais, não importa o que os números digam. É na cidade, onde pessoas jovens, instruídas e dispostas não conseguem, com seu trabalho, ter casa, e a precisam alugar.
O que torna o capitalismo um pouco melhor, diríamos, é que nele pelo menos há uma possibilidade de posse, coisa que no comunismo não existe. E isto é verdade; mas não verdade eterna. Vamos reinvocar nosso Judeu Errante. O João acredita que, em nossa sociedade, o interesse que move as pessoas é simplesmente o lucro. Isto seria crível, se fosse possível; mas não é. Um sistema que trata de concentrar a propriedade até os níveis da extrema abstração, tirando das pessoas a casa e a roupa, não pode desejar o lucro, isto é, que a produção de riqueza seja mais veloz que o seu consumo; para isto ser possível, é necessário que ainda haja algum consumo, o que a própria tendência aglomerante do lucro vai dificultando até a impossibilidade.
É claro que a produção e o consumo não podem seguir um mesmo ritmo, e por isso o capital é desejável, como abstração da mesma riqueza que se produziu ou que se vai produzir. É uma prova da humanidade do comércio, porque se processa na inteligência, se apóia sobre uma convenção, isto é, um acordo e uma promessa, e pode ser associado livremente por seu possuidor a qualquer bem concreto que este deseje.
Mas a capitalização extrema e exagerada - o fato de que a maior parte do dinheiro do mundo existe apenas em registros nos sistemas de informática dos bancos - em si é má, por sua intenção e por seus frutos; mas antes é falsa, porque dissocia o símbolo de seu significado. Isto, com o tempo, gera loucura; uma loucura na qual o homem esquece de que não se pode comer o dinheiro, nem morar nele, nem se vestir dele; mas ainda mais impossível é fazer isso com dinheiro eletrônico, isto é, com o abstrato ao quadrado.
***********************
Parece que eu já reclamei bastante, e por uma estranha etiqueta de nosso mundo moderno, devo sugerir uma terapêutica mesmo que não esgote o diagnóstico. Vamos a isto, então.
Quem de nós não acredita no muito humano desejo de posse? Quem duvida que mesmo no mais comunista dos mundos, ainda não desejaríamos uma casa para pintar da cor que quisermos, filhos para mandarmos dormir e um pudim para comermos então, junto a um cônjuge que escolhemos por nossa própria vontade? Quem duvida que esta é a imagem mais próxima que se pode ter, neste vale de lágrimas, do paraíso que perdemos um dia - e do qual temos todos uma memória mais ou menos viva?
O que sugiro, então, é que tomemos todas as nossas armas para defendermos nossa família, nossa casa e nossas coisas, as pequenas coisas que tantas vezes se sacrificam por nós: o tabuleiro que suporta o calor do forno para nos trazer um bolo, o livro que, mesmo maltratado pelos nossos dedos, nos ajuda a contar uma história para que o filho durma.
Os objetos, as boas coisas da casa, não são livres mas são fiéis. Quero crer que é de seu espírito a fidelidade que possuem. Que mesmo que os brinquedos acordem quando meu filho dorme, eles se apressam a voltar à passividade enquanto vêm a manhã, para servi-lo como ele desejar.
Por isso, então, sugiro: Defenda você a sua vida, a sua casa e as suas coisas. Mas acima disso defenda o seu direito de viver, de morar e de possuir, isto é, o meu direito, e o direito daquele mendigo que vai passando ali na esquina, e até mesmo o direito do Bill Gates: O direito que Deus nos outorgou no paraíso, e que nunca revogou, mesmo quando o condicionou ao suor do rosto, de ter vida, casa e um vinho decente para acompanhar um queijo honesto.
terça-feira, 12 de agosto de 2008
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Um comentário:
descobri o vosso blog, nao sei bem como, mas a verdade é que gostei e planeio visitar com regularidade. um bem hajam pra todos
Postar um comentário