quinta-feira, 10 de julho de 2008

E isto não vem de vós

Respondendo ao desafio do Igor, vou explicar, de modo grosso e geral, o que significa o conceito protestante de salvação pela fé. Salvação pela fé é uma expressão mal-usada, muitas vezes, justamente porque leva pessoas a acharem que tudo o que basta para a salvação é uma espécie de assentimento intelectual. "Sim, sim, Deus é jóia, e Jesus é maravilhoso- agora sou salvo também." Não é. A salvação nunca- nunca, nunca- pode partir de iniciativa nossa, nunca é uma decisão inicial nossa, nunca é uma busca nossa. Não é uma questão simples de "ter" fé. Mas vamos começar do começo.

O homem sem Deus não tem a possibilidade, a chance, a sombra de uma esperança, de satisfazer a justiça eterna de Deus, e nem a menor vontade de fazê-lo. Romanos 3:9-20 já explica claramente a posição humana. Por isto, apesar de muito querer, não consigo acreditar na salvação daqueles que nunca ouviram o evangelho; eles não podem ser batizados pelo desejo pelo simples motivo de que o desejo do homem caído é completamente corrompido. Egoísmo, ódio, e a inimizade contra Deus são o status espiritual inicial de todo ser humano, e é isto- e não o fato de nunca terem ouvido o evangelho- que os condena. É a doença que mata, não a falta de remédio.

Esta incapacidade de justiça real, de buscar a Deus, também é o motivo pelo qual o homem não pode simplesmente escolher ter fé. É o motivo pelo qual obra nenhuma- nem mesmo a obra de amar a igreja, ou de pertencer a ela- pode salvar; nossa justiça é imunda, nossas mãos são fracas, nossa vontade é escrava, e nossa fé não é nem mesmo nossa, porque é um dom de Deus, e não uma decisão humana. Se o homem pudesse ser salvo por obras, poderia ser salvo pela lei; e se o homem pode ser salvo pela lei, Jesus morreu em vão. O homem é salvo inteiramente pela ação e misericórdia de Deus. Ele nos busca, e não vice-versa. Nesta visão de depravação total tanto calvinistas como arminianos concordam.

O novo nascimento, o momento em que o homem deixa de viver em trevas e passa a andar na luz, o momento em que ele deixa de pertencer ao mundo e passa a ser um filho de Deus, é resultado da fé. Através da fé o homem pode aceitar o sacrifício de Cristo, através da fé o homem pode entrar na nova existência; mas esta fé não é, como já foi dito acima, uma atitude humana, um mero assentimento intelectual. É dom de Deus. Aliás, o próprio Paulo explica isto majestosamente em Efésios 2, uma das mais perfeitas exposições da doutrina da salvação. Daí a dificuldade de definir "que tipo de fé" salva; porque a única fé verdadeira, a fé real que gera arrependimento e salvação, vem exclusivamente do alto, e é impossível compreendê-la completamente.

Quanto a como o homem recebe esta fé- seja pela graça irresistível de Deus, segundo seu conselho eterno (como diria um calvinista), seja pela graça preveniente de Deus, segundo sua vontade de salvar a todos (como diria um arminiano)- isto é objeto de debate esquentado; mas debate intra-protestante, e não debate protestante-católico. Ambos, no final, afirmam a mesma coisa: apesar da salvação vir pela fé, a fé não é criada por nós, mas dada por Deus. A salvação não vem se você combinar as doutrinas certas em sua mente, como se a salvação fosse uma receita de bolo com diversos ingredientes; a salvação vem quando você recebe de Deus o dom da fé- e esta fé não é uma sensação fofinha, uma mera inclinação espiritual ou mística, mas carrega dentro de si um conjunto de doutrinas sólidas e eternas. A fé não é mero assentimento intelectual, mas ela opera não somente no coração, mas também (e talvez principalmente) na mente.

Quanto ao conteúdo desta fé, os pontos específicos nos quais passamos a crer, é complicado dizer que um ou outro é absolutamente necessário como sinal de que a fé é verdadeira. Creio, porém, que a fé gerada por Deus estará fundamentada nas seguintes verdades: que há um só Deus em três pessoas: Pai, Filho, e Espírito Santo; que este Deus é nosso criador, e criador do universo, e que todas as coisas foram criadas para sua glória; que pelo pecado de Adão nos tornamos pecadores merecedores do inferno, mas a misericórdia de Jesus Cristo, Deus e Filho de Deus, excedeu nossa iniquidade; que Jesus Cristo, o Filho eterno, o Logos de Deus, a perfeita expressão de seu caráter, se fez carne, viveu sem pecado, foi traído, torturado, e executado, e pagou por nossos pecados com seu justíssimo sangue; que Jesus Cristo ressuscitou dos mortos, vencendo a morte e garantindo a ressurreição futura daqueles que o servem; que Jesus Cristo ascendeu ao Pai, e está assentado ao seu lado direito, governando sua igreja e preparando um lugar para ela na eternidade; que Deus agora aceita e justifica suas criaturas pelo sacrifício de Cristo; que ao homem justificado é possível buscar santificação, e viver em obediência a Deus, através do poder e da presença vivificante do Espírito Santo; que há uma comunidade eterna e única dos santos, o corpo de Cristo: a Igreja, santa e gloriosa, eternamente e espiritualmente unida, apesar de estar separada por divisões temporárias e dissensões doutrinárias; que Deus nos deixou sua Palavra, santa e inspirada, proveitosa para ensinar, para repreender, para corrigir, e para instruir em justiça; que um dia Jesus Cristo dará um fim à história humana, e que todos- os vivos e os mortos, os santos e os pecadores- darão contas perante a ele; que novos céus e nova terra aguardam os que pertencem ao Senhor, mas todo aquele que recusou sua misericórdia sofrerá eternamente sob seu juízo.

Estes são os pontos sobre os quais todo cristão pode (ou ao menos deveria) concordar, os ossos do cristianismo, os fundamentos sem os quais o edifício não pode ser construído. Não digo que a fé resultará apenas nestas crenças, mas que a fé não virá sem que elas venham junto. E é esta fé, que vem do Senhor e transforma nossas mentes, que traz a salvação, tanto do protestante quanto do católico. Esta é, de modo resumido e grosso, a posição protestante, e é o que queremos dizer quando pregamos que a salvação vem pela fé.

Um comentário:

Leonardo T. Oliveira disse...

Acho esse texto ótimo e muito bem escrito. Algumas questões surgem a partir dele, como:

1) O que a consciência de que a fé seja dada por Deus, e não alcançada pelo homem por si próprio, muda na postura da evangelização? Afinal, se a fé é tarefa de Deus, então nosso trabalho em anunciar o evangelho diz respeito apenas a tornar seus termos disponíveis às pessoas. Uma idéia que, grosseiramente, comparo a um quase liberalismo: sem a intenção de doutrinar a motivação individual das pessoas (que seja a presença ou não da fé sobre a qual não temos controle), e subentendendo que apenas a liberdade representa a diversidade natural de uma sociedade, o importante é que a palavra do Evangelho esteja disponível para o indivíduo que as quiser buscar. É isso?

2) Sobre a idéia de que aqueles que nunca ouviram o evangelho não podem ser salvos, a velha questão que surge é: nem mesmo os natimortos e os mentalmente incapazes? Entendo o que você quer dizer e me lembro de versículos como João 5:24: "Na verdade, na verdade vos digo que quem ouve a minha palavra, e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna, e não entrará em condenação, mas passou da morte para a vida", etc. Mas se formos muito normativos no nosso entendimento de quem é salvo e de quem não é, vamos nos deparar com esses casos humanamente injustos, quando o indivíduo sequer teve a chance de ouvir o Evangelho e imaginamos que Deus automaticamente o condenará sem ter nada a fazer a respeito. Lembro neste momento de uma palavra que é diferente mas ainda é parecida, em Atos 17:30, referindo-se aos pagãos a.C.: "Mas Deus, não tendo em conta os tempos da ignorância, anuncia agora a todos os homens, e em todo o lugar, que se arrependam". Não seria possível que, no prestar de contas diante de Jesus no Juízo Final, alguém que não tenha ouvido o Evangelho fosse perdoado? Ou que pessoas que não desempenharam condições de uma conversão tenham, no entanto, a marca da eleição de Deus?

Abraços e não sumam!